terça-feira, 20 de julho de 2010

Hoje tem festa - Capítulo 1

Vanderlei Carrasco
Hoje tem festa




Para
Rafael de Souza Carrasco
meu filho
A
João Antônio
conterrâneo

dedico

“... bebendo Whisky de marca ruim
Acho que hoje este é meu fim...”

NA BALADA, Alexandre Rocatto


Vanderlei Nogueira Araujo Carrasco, acredito ser este meu nome verdadeiro. Após três longos anos de tratamento, lembro meu nome, onde nasci, o rosto dos meus pais, minha ex-mulher, meu último cachorro, meus sócios, o negócio com os americanos era muito atraente, a farra que parecia nunca ter fim. Brigas, intrigas, meu carro esportivo, vida burguesa, a vontade de mudar, sair daquele buraco imundo que chamam de zona sul, fez o que eu sou, quer dizer, me trouxeram até aqui... clínica de reabilitação, era isso ou cadeia, hospício, cemitério... Meu médico disse que é importante eu relatar minha história, do princípio, para poder me fortalecer, para que Deus tenha piedade de mim. Acredito na força divina, foi ela que evitou minha morte prematura: Cristina e a faca, cocaína batizada, Carlos, mãos de caranguejeira, e o revolver, a curva sinuosa da RIO-SUL, mulher de policial, raio na partida de futebol em um campinho da várzea, tantas e quantas biqueiras.
Não quero falar, a princípio, de morte, e sim da vida que hoje posso inalar francamente, limpo e careta. A morte tem alguns nomes: Cristina, Carlinhos, Rodrigo, Reginaldo, 21, Smith & Courtney, Gregory, Vincent, que por hora, deixemos em seu devido lugar, a memória. Hoje, quero descrever a alegria de ver novamente o sol por entre estas nuvens espaçadas... A criança que empina aquela pipa vermelha e branca ainda não sabe o que significa a dimensão deste céu e aonde o vento forte e incessante pode levar.
A grama bem cuidada da clínica, o jardim que cresce bem aparadinho, flores e árvores escondem um muro alto, que fica mais alto quando considerado o arame farpado e a cerca elétrica e, para nós, que fique bem claro, é necessário o tratamento de choque, porque ninguém em insana consciência quer parar com “porra nenhuma”. A moça que chegou semana passada está gritando ainda, se arranhando, vez ou outra morde um dos monitores e se continuar fazendo isso, ficará amarrada por mais alguns dias. Não come, não dorme, faz muito escândalo. Filha de um delegado da polícia civil, a moça representa o paradoxo dos tempos atuais: lindinha, bem cuidada, cabelo liso, rosto perfeito, estudou nas melhores escolas de São Paulo, colégio PIO XII, faculdade Anhembi-Morumbi, comércio exterior, envolveu-se com a pior espécie de marginais do centro, dá para acreditar?, ninguém consegue imaginar Sara, nas ruas do centro, dormindo embaixo de marquise, dando para conseguir trocado e fumando pedra em cachimbo ordinário. O pai mandava buscar sempre, mandava bater sempre, nunca na filha, nos outros, a culpa eram as companhias, a culpa era da mãe que permitia tudo e dava dinheiro para Sara curtir a balada com os boyzinhos de Moema, do Mackenzie, onde descobriu a cachaça, a maconha, o sexo, a cocaína, anfetaminas (drogas sintéticas em geral), o crack, mamãe muitas vezes financiando quartos emporcalhados na chafurda call Boca do Lixo, ou Cracolândia. Conheci Sara e outras tantas Saras em minhas andanças noturnas pelo centro de São Paulo.
─ Cala a boca e me chupa, vadia descarada!
Agora me lembro, foi num cinema pornô perto da São João que vi Sara fazer um boquete para um sujeito muito mal encarado. Entrei ali só para curtir a brisa de um baseado e presenciei a cena de uma moça muito linda, duas fileiras a frente da minha, pagar com sexo oral as duas pedras de crack que o sujeito havia prometido.
─ Cadê, Cadê!!!
─ Piranha, já falei que vou te dar. Se você ficar fazendo escândalo, eu torço esse seu pescoçinho de patricinha vadia... Agora engoli tudo... Puta!
Espero que agora Sara consiga se livrar do vício, pobre moça, grita demais e é apenas a primeira semana de desintoxicação, depois vem a abstinência e, como costumamos falar, quero ver quem é quem, parece que a porta do inferno se abre e a gente fica a beira do abismo esperando a baforada quente do capeta para vir nos buscar.
Lembro-me que na minha adolescência fui a um retiro espiritual, acampamento Renascer. De trezentos jovens e adolescentes, ali havia cinco, mandados pelos pais, como forma de amenizar os transtornos causados pelo vício das drogas, duas meninas e três meninos... Na segunda noite de fissura, fugiram, encheram a cara na cidade, Taubaté, encontraram o que procuravam e voltaram para o acampamento fazendo algazarra e tudo mais. Uma delas, que fora isolada no quarto por causa do comportamento agressivo, socou a janela e teve de ser conduzida ao hospital com cortes profundos nos pulsos. Ninguém soube o que aconteceu com a moça, mas eu vi muito sangue até o caminho que levava ao portão do acampamento.
Parece que este negócio de sangue, aflição e orgia me persegue a muito tempo, antes mesmo de o esperma de meu pai fecundar o óvulo de minha mãe numa casa sem reboco e de chão de cimento queimado no Jardim Girassol.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Fabulinha




Andando por uma rua do Balneário, Zé. Passos lentos, boca seca, morrendo de vontade de matar a sede. Entra no bar e pede uma branquinha. Mas tá calor demais. Então pede uma cerveja mesmo. Pede para pendurar na conta, diz que paga no dia 10. Recebe indenização do ESTADO por invalidez. Pede também seu saldo, que está R$300,00 negativo. “Eu pago, eu pago... Tarda, mas não falha.” Zé é homem honrado, prometeu, está cumprido e ninguém questiona mais isso.
Vê o caminhão das Casas Bahia dobrar a esquina. É o sofá. Tem que ser o sofá. Branco, do jeitinho que Dona Josefa encomendou. Os homens da mega loja reclamam do calor. Tá calor demais. Zé oferece um copo de suco de limão que ele mesmo fez. Os homens bebem com pressa, descarregam a mercadoria com mais pressa ainda. Eles ainda iriam lá para os lados do Álamo, Campinas, Casa Grande e Recanto.
Dona Josefa paquera demoradamente o sofá novo. Branco. Zé, latinha de cerveja na mão, conversa agora com seu vizinho que reclama muito do calor. Zé comenta sobre o jogo de ontem em Presidente Prudente. “Você tinha que ver”, gargalha. “O narrador e o comentarista estavam se desmanchando em suor. Falava que às 7 horas da noite o sol ardia como se fosse meio-dia. E suavam”.
Zé comentou isso porque se lembrou de quando morava em Londrina. E se lembrou de João Antônio que uma vez comentou que em Londrina até a brisa era um bafo quente na fussa de todo mundo. Norte do Paraná. Perto de Prudente. Faz calor demais.

Telas com aroma de pizza napolitana. Quem lê quer fazer acreditar que é real.


I could to make real. Tudo leva bateria ou pilha? SyncMaster. Não podia imaginar que meu livro entrou na categoria digital. Eu tenho uma réplica de um Chevelle, 68. Encontrei no sebo do centro a coletânea completa dos episódios inéditos do Chapolin Colorado. Depois dos trinta isso é tão iminente. Ainda ouço um belo verso de uma banda contemporânea: “É melhor dizer, amor acabou a cerveja. Que dizer, a cerveja! Acabou o amor.” Vou levar para meus alunos analisarem sintaticamente a frase, que não sei se reproduzi corretamente.
A vida são colagens, pequenas coisas flutuando na xícara do meu cereal